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Reviver o sonho de Francisco

Reviver o sonho de Francisco e Clara de Assis no chão da América Latina e Caribe

Fr. Doraci Tartari OFMCap

Num certo dia, quando se lia na Igrejinha da Porciúncula, o Evangelho no qual o Senhor enviara seus discípulos a pregar, estando presente Francisco, suplicou humildemente ao sacerdote que lhe explicasse o significado de tais palavras. Ouvindo São Francisco que os discípulos de Cristo não deviam possuir ouro, prata ou dinheiro, não levar bolsa nem alforje nem pão nem bastão pelo caminho, nem ter calçados nem duas túnicas, mas pregar o Reino de Deus e a conversão, exultando imediatamente no Espírito do Senhor exclamou: ‘É isto que eu quero, é isto que eu procuro, é isto que eu desejo fazer de todo o coração’! Apressa-se o Santo Pai, transbordando de alegria, em cumprir o santo conselho, pois não suporta demora alguma, mas começa devotamente a colocar em prática o que ouviu...” (1Cel22).

Este ‘certo dia’, segundo uma tradição que remonta a Tomás de Celano, teria sido o dia 24 de fevereiro de 1208, festa de São Matias. Ele que até então, há anos, apenas vagava nas penumbras de uma difusa busca e que até ali, sabia apenas o que não queria, agora, ao ouvir este Evangelho (Mt 10,5-15 - ou Mc 6,7-11 ou Lc 9,1-5), se reconhece, sua busca encontra uma resposta e o seu sonho se aclara: “È isto que eu quero, é isto que eu procuro, é isto que eu desejo fazer de todo o coração”!

É assim que tem início a Forma de vida Franciscana, um movimento penitencial, logo abraçado por Clara de Assis e por tantos homens e mulheres depois deles. Este é o sonho de Francisco e clara de Assis que queremos reviver no chão da América Latina e Caribe, depois de 800 anos: O encontro com o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, assumido como Forma de Vida e que inclui Minoridade, Seguimento e Envio em Missão.

Não se trata de comemorar uma figura, Francisco, Clara ou algum outro, mas de trazer à memória a origem do Carisma Franciscano, de reviver um sonho, de atualizar uma utopia.

Para Francisco, este ‘certo dia’, é mais do que uma data significativa. É um momento sagrado em que ele se sente visitado pelo próprio Cristo, não pela mediação das instituições religiosas, mas na imediatez de coração-a-coração. É o coração do Amor aquecendo o coração do amado, fazendo-o vibrar de emoção e exultar de alegria, numa sintonia de sonho e num compromisso de causas. O sonho do Amor torna-se o sonho do amado. As causas pelas quais viveu e morreu o Amor são assumidas pelo amado num empenho vital e mortal. Tanto se identifica o discípulo com o seu Mestre que os biógrafos não hesitam denominá-lo como “o outro Cristo, o Primeiro depois do Único; o Evangelho vivo, o mais perfeito dos cristãos depois de Maria Santíssima”.

Aquele ‘certo dia’, é para nós um evento sagrado, pois ele guarda em si, em permanente memória, o momento fundador da Vida Franciscana. É o momento aclarador do Sonho Franciscano que já palpitava no coração de Francisco. Por isso estamos nos acercando de um chão sagrado. Urge que tiremos as sandálias e, nele, nos adentremos com a humildade, a reverência, os cuidados e a imediatez dos pés descalços. Como o fizeram os primeiros companheiros do santo, como o fizeram Clara e suas irmãs, como o fizeram tantos seculares.

Ali, naquele ‘certo dia’ de 800 anos passados, irrompeu para dentro da história o Carisma Franciscano, que deve ser acolhido como uma inspiração sagrada, em todos os tempos, para sempre, por todos aqueles e aquelas que acreditam ser possível e, por isso, assumem o sonho de Francisco e Clara de Assis, de viver conforme o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo no chão desta América Latina e Caribe, tão marcados pela injustiça, pela violência e pelo desrespeito à vida.

Celebrar os 800 anos do Carisma Franciscano, é debruçar-se sobre o espelho da vocação comum, alegrar-se com as águas do manancial de origem e sentir-nos impulsionados à fidelidade criativa ao mesmo Carisma fundacional. Temos de admitir que há uma notável distância entre o sonho Evangélico-franciscano das origens e o modo como o vivemos hoje! Apagaram-se acaso os nossos sonhos? Esmoreceram nossas esperanças?...

E, no entanto, o sonho de Francisco e Clara de Assis continua falando alto aos homens e mulheres de nossos dias, pela misteriosa afinidade entre o Carisma franciscano e as melhores bandeiras que mobilizam a consciência atual da América Latina e do Caribe e, por que não, do mundo inteiro:

·         A bandeira da solidariedade com os pequenos e da justiça social, expressão prática da Minoridade;

·         A bandeira da Paz, constitutiva do anúncio franciscano e tão cara a São Francisco;

·         A bandeira da Ecologia, que tem em Francisco seu patrono e inspirador, e que interpela ao cuidado da nossa casa comum e nas relações de convivência com todas as criaturas;

·         A bandeira da Sobriedade e da Frugalidade franciscana, face ao exacerbado consumismo de nossa sociedade;

·         A bandeira da Fraternidade, face à tentação de valorizar as pessoas pelo poder ou riqueza que possuem;

·         A bandeira do Diálogo e do Ecumenismo, em todos os níveis, como condição de sobrevivência de nossa espécie;

·         A bandeira das Relações de Gênero, chance histórica única confiada às atuais gerações, e que não pode em absoluto ser fraudada;

·         A bandeira da Misericórdia numa sociedade desumana e insensível;

  • A bandeira da Simplicidade e da transparência num sistema hipócrita e corrupto.

A qual destas e de tantas outras bandeiras o Carisma Franciscano não tem alguma luz a oferecer? Francisco continua jovem e atual; nós é que parecemos envelhecidos e desatualizados!...

A vida fora generosa para com Francisco. Era um jovem, por natureza, afável, alegre, pródigo, jovial, altivo, inteligente, brincalhão, cortês nos costumes e nas palavras. Filho de próspera família, jamais experimentara as aflições da pobreza. Podia dar-se ao luxo das festas, dos banquetes suntuosos, das roupas finas, do dinheiro, das viagens... Mas o seu coração estava inquieto e ele vivia decepcionado com o sistema feudal de então, que se compunha de três classes distintas: o clero; a nobreza e os camponeses. O clero erguia a cruz e rezava; a nobreza brandia a espada e dominava; o camponês fremia a enxada e trabalhava.

Francisco tem 16 anos quando, na primavera de 1198, os habitantes de Assis assediam e arrasam a fortaleza que domina a cidade, a Rocca, símbolo do poder feudal e imperial. Tem 18 anos quando Assis é erigida em Comuna livre: em praça pública os cidadãos abolem todas as obrigações e direitos feudais. Sopra um vento de liberdade e de orgulho na cidade emancipada. E Francisco, como todos os jovens de sua época, respira este ar e contagia-se com as aspirações de justiça, emancipação e liberdade dos novos tempos.

E ele quer ser mais do que apenas o filho de um grande comerciante. Sonha ser, por mérito próprio, cavaleiro (nobre, maior). Luta contra Perusa que quer abafar os anseios da comuna de Assis. E isto lhe causa um tremendo fracasso. Mas o ano de prisão nas masmorras de Perusa, não o leva ao desespero. Sonha ainda mais alto. E de volta à sua terra, intensifica a sua busca, na certeza de ser chamado a coisas mais nobres e maiores.

Entre outros revezes e enfermidades, recolhe-se às grutas, enfrenta a solidão e a perseguição e vai purificando as suas motivações. E,naquele ‘certo dia’, a procura, finalmente, acha o eternamente sonhado. Braços e coração abertos na incontida alegria de ter encontrado o tesouro em tantas errâncias procurado.

E desse encontro surge um homem impressionante, cujo fascínio transpõe as fronteiras do cristianismo e dos séculos. Há, neste homem, algo de límpido e de luminoso que se impõe como uma presença, que nos leva a afirmar que Francisco representa a mais autêntica figura humana que a Europa gerou. Nele vemos concretizada a bondade, a fineza, a cortesia, a ternura e compaixão, uma imagem e semelhança de Deus mesmo.

Sua humildade, desfeita de toda sofisticação, sua afabilidade sincera para com todos, sua singela inocência, sem prepotências e maldades, sua largueza de alma, pela qual acolhe a todos como irmãos e irmãs, seu reverente entusiasmo para com o mundo e suas criaturas, o jeito pacífico e portador de paz, o faz próximo de todos. O respeito com que trata todos os seres, do sol magnífico à inexpressiva erva, com gestos e palavras tão poéticas... Enfim, o seu amor sem fronteiras, desperta em cada ser humano a nostalgia de ser e acalenta em cada coração a Utopia do Paraíso, perdido pelo nosso pecado.

Olhando para Francisco somos levados a exclamar: Assim deveria ser toda a humana criatura! Conhecendo o seu sonho somos levados a concluir: Assim deveria ser o mundo e a humanidade! Olhando para Francisco temos a impressão de ver Adão no Paraíso Terrestre, antes do pecado original. E conhecendo o seu sonho temos a impressão de estar no jardim que Deus criou para nele colocar o ser humano.

Todo o rio, por mais caudaloso que seja, sempre parte de uma fonte. É de lá que brotam as águas que descem pelos vales, fecundando a terra, na direção do mar. Assim também com Francisco. A fonte e a origem desse caudal de humanidade é o seu encontro com o Deus de Jesus Cristo do Evangelho, o Altíssimo, cujo nome pessoa alguma é digna de pronunciar e, diante do qual, se coloca numa atitude de humildade e reverente admiração e adoração. O mundo se torna, para Francisco, o lugar das manifestações da graça e da infinita criatividade de Deus.

Abraçando as criaturas toma nos braços não apenas os seus limites e sombras, a sua pequenez e insignificância, mas também o seu último Mistério: Deus mesmo! Recusar-se do mundo é expulsar-se de Deus. Quem se coloca longe das criaturas, coloca-se também longe do Criador! As criaturas são portadoras dos vestígios do Criador. Por isso, dignas de respeito e cuidado. Francisco nos ensina que elas são nossas irmãs, colocadas ao nosso lado, como dádivas que não nos pertencem. E assim, agradecido, ele as saúda como um dom, acolhe-as como irmãs, convive com elas, em cortesia, deixa-as viver, jamais se sente senhor ou proprietário delas. Mas, igualmente, nunca seu escravo ou serviçal. De nada se apropria. É um pobre que a nada se prende, nem por nada se deixa possuir.

Em Jesus Cristo, Francisco descobre que Deus é Humildade, Simpatia e Compaixão para com o mundo. Por isso, louva-o com reverência e sente, para com Deus, uma imensa ternura e compaixão:

“Tu és Santo, Senhor Deus único, que fazes maravilhas;

Tu és grande, Tu és Altíssimo, Tu és trino e uno ;
Tu és o Bem, todo o Bem, o sumo Bem ;

Tu és amor, Tu és alegria, Tu és beleza, Tu és humildade,

Tu és nossa esperança, Tu és nossa doçura, Tu és nossa Vida eterna:

Grande, admirável Senhor, Deus Onipotente, misericordioso e Salvador“ (LD).

Tanto Francisco como Clara, ao tratar com Deus, têm delicadezas de um coração apaixonado: eles se enternecem até as lágrimas, contemplando os seus mistérios. Compadecem-se com sua simplicidade. Acariciam seus vestígios. Enchem-se de doçura na recordação de sua vida. Querem ser-lhe próximos, irmãos, irmãs e mães. Querem ser-lhe assemelhados.

Clara, como Francisco, têm um senso vivo da divindade de Cristo, mas ficam particularmente estupefatos diante de sua humanidade, de seu despojamento: O Senhor se fez pobre por nós, foi posto num cocho de animais, viveu pobre no mundo e ficou nu no patíbulo.

Por isso, Francisco chora e dança de alegria e dor. Alegra-se com o irmão que chega, tem prazer no canto da cigarra, gosta dos doces da Senhora Jacoba, extasia-se com o inseto minúsculo, sabe adivinhar o segredo das coisas. Chora com o Amor Crucificado e alegra-se com as visitas de Deus, a ponto de exclamar: “Deus é alegria; Deus é beleza...” Toma o amor materno como paradigma do amor solícito que deve prevalecer entre os irmãos.

Clara e Francisco fazem lembrar o vigor do sol e a ternura da lua. Ligados por uma amizade intensa e transparente, parecem viver um sob a claridade do outro, e ambos sob a claridade do Grande Sol: O Cristo pobre e crucificado.

Não se pode compreender um sem o outro, como não se pode compreender o que é que Clara aprendeu com Francisco, o que Francisco apreendeu com Clara e o que é que ambos apreenderam juntos do mesmo Mestre, Jesus Cristo. Duas amizades em busca do mesmo Amor!

Em Francisco e Clara encontramos uma das sínteses mais felizes que a cultura ocidental e cristã elaborou. Neles existe todo o vigor do “ánimus” e admiramos, simultaneamente, uma extraordinária expressão da “ánima”. Sem machismo nem feminismo, sem fragilidade nem rigidez, neles afloram, harmoniosamente, um vigor terno e uma ternura vigorosa que constituem o brilho típico de suas personalidades.

Essa relação de harmonia expande-se às criaturas todas, que eles abraçam e com as quais estabelecem uma amigável união, ao ponto de pregar às flores, como se fossem dotadas de inteligência, convidando-as a louvar o Senhor. Quem poderia convidar os trigais e os vinhedos, as pedras e as selvas, as planuras dos campos e as correntes dos rios, a beleza das hortas, a terra, o fogo, o ar e o vento, à gratidão do Senhor, a não ser pessoas com Francisco e Clara?

Francisco e Clara, como hábeis escultores, manejando o cinzel e o martelo com destreza e precisão, com firmeza e fineza, tiram de si o supérfluo e fazem saltar de sua natureza uma obra que fascina e que nos leva a exclamar: “Eles são o homem e a mulher que todos gostaríamos de ser: humanos, afáveis, fraternos, portadores de paz... Não uma doida saudade do que fomos, mas uma esperança alegre do que podemos ser.

Os ideais de Francisco e Clara deixaram as montanhas da Úmbria e, como as águas de uma fonte, desceram pelos vales do mundo. Seus sonhos, muito cedo, passaram a ser partilhados por um número incontável de homens e mulheres, religiosos, religiosas e leigos de todas as raças, culturas, idades e posição social. Em três Ordens, tendo como espelho Francisco e Clara de Assis, buscamos ser este tipo humano diante de Deus, das pessoas e do mundo criado.

É verdade que o nosso ser humano-Francisclariano já não é tão cristalino como em seu nascedouro. Mas a Fonte não secou! E é por isso que, nestes 800 anos do despertar desta incrível aventura, queremos reviver o sonho de Francisco e Clara de Assis no chão desta América Latina e do Caribe.

É verdade que os tempo hoje são outros. As dores do mundo e de suas criaturas são outras. Os apelos são outros. As exigências são outras. Os cuidados também hão de ser outros. Seria ingênuo, anacrônico e impossível reproduzir o Carisma ao pé da letra, vivendo-o como Francisco e Clara o viveram. O que se pede a nós, Franciscanos e Franciscanas das três ordens, religiosos e religiosas, leigos e leigas é a fidelidade criativa ao Carisma, como fonte da inspiração das mais genuínas e fonte de inspiração dos mais genuínos e verdadeiros valores Evangélico-humanos, quais sejam:

·         A referencia a Deus como Sumo Bem;

·         A proximidade e a fraternidade;

·         O cuidado e a compaixão;

·         O sentir-se bem entre os pequenos.

  • O ecumenismo e o diálogo em todas as direções...

Gostaria de ilustrar isso, com o final do discurso do presidente do Egito Muhammad Hosni Mubarak, num livro que ele enviou ao Papa Bento VI no primeiro semestre deste ano: “A meu ver, não existe um choque de civilizações ou de religiões, mas um choque de interesses. Os conflitos a que assistimos hoje, são motivados por grupos políticos que buscam o domínio e a destruição, e que tomam as religiões como refém e as instrumentalizam para realizar seus objetivos. Olhando para o passado, para a história de São Francisco e daqueles que seguiram seu exemplo no século XIII, podemos sentir uma esperança. Hoje, em todas as religiões, ainda existe quem segue o exemplo do santo e decide construir pontes entre os seguidores de religiões diferentes e promover a paz entre as civilizações” (Revista 30 dias, Ano XXV; N° 6/7; p 43).

Sedento e faminto, o mundo busca pessoas que lhe falem do absoluto, como pai-mãe de todos e, por isso, que todos sejam irmãos e irmãs, esmerados no cuidado e compaixão por todas as criaturas, servidores dos humildes e pobres.

Pessoas que, como Francisco e Clara, se aproximem das criaturas com um olhar não possessivo; que busquem a salvação do mundo, não pelo poder, mas pelo amor que se despoja e se volta ao serviço das pessoas; que acreditem nos valores humanos e na vida; que não tragam a marca da polêmica, mas da simpatia; que não empunhem a espada, mas o exemplo de vida; que saibam não só escutar a música dos pássaros, mas também interpretar a sua letra.

A América Latina e Caribe compreende 46 países, a partir do México para o sul. Trinta e três (33) são países independentes e 13 pertencem a Ingleses, Holandeses, Norte-americanos, Franceses... Não leva a denominação de “América Latina” por causa das línguas neo-latinas, pois neste conjunto há países que falam inglês, alemão... Esta nomenclatura é usada, também por Roma, para distinguir os Estados Unidos do restante do Continente Americano.

É exatamente aqui, neste chão da América Latina e Caribe, neste tempo presente, em que vivemos sob o império da mais-valia, do desejo de lucro desenfreado, do consumismo exacerbado, quando, de forma avassaladora, a antropolatria, na sua face mais cínica: a indiferença para com as criaturas, a exclusão dos pequenos, o aburguesamento, a voracidade insaciável de sempre-mais-ter, parece não reter seus passos, nem mesmo no espaço religioso e eclesial, exatamente aqui e agora, que somos interpelados por Francisco e Clara de Assis, a reviver o seu sonho 800 anos depois.

O sonho é o futuro que ilumina o presente. O futuro é o sonho; o presente é a possibilidade. Temos que sonhar! Não podemos deixar que nos roubem os sonhos, pois eles impulsionam o presente para o futuro.

Todos sabemos que a primeira Missa no Brasil foi celebrada por um Franciscano (Fr. Henrique de Coimbra) em 1500. Porém, este voltou em seguida para a Europa. E os primeiros Missionários Franciscanos, chamados “os doze apóstolos” chegaram ao México em 1523, imbuídos do mais puro ideal evangélico. Acreditavam sinceramente que, na América Latina, iriam instaurar uma Igreja pura, sem ruga e sem mancha, como a comunidade apostólica, proposta pelo Novo Testamento e por Francisco de Assis. E encontraram nos índios o seu ideal utópico, o seu sonho realizado.

Os Missionários Franciscanos sonham e tentam constituir uma Igreja Indígena, onde a primazia é para o Amor e não para a lei. Onde a experiência de vida é mais importante que o conhecimento. Onde a pessoa está acima da estrutura. Onde o Evangelho suplanta a religião. Por isso, o missionário franciscano deixa-se interpelar pela cultura do índio. Deixa-se evangelizar por ele. Considera o índio sem pecado original. Conserva a sua cultura, “sem a religião”, mas com o Evangelho. No índio, considerado pagão pela Europa, o franciscano descobre a alma naturalmente cristã, mesmo sem ser batizado.

Tenhamos sempre, como pano de fundo, Francisco de Assis, que recomenda a seus frades que o primeiro Evangelho a ser pregado, seja o Evangelho da fraternidade, da convivência e do serviço simples e humilde entre as pessoas (cf. RnB 16).

Por isso, Francisco, pela presença dos franciscanos, penetrou fundo na alma Latino-Americana. É venerado como o “Totahtzin San Palacizco” (nosso paizinho São Francisco), pelos Astecas (como aparece em textos da cultura nahua); o São Francisco das Chagas de Canindé; o São Francisco passarinheiro; o São Francisco dos pobrezinhos e lascados, na linguagem do nordeste...

Os indígenas que sofriam barbáries sob os “doctrineros” – párocos de índios – e mais ainda sob os “encomenderos”; os índios que chegavam a fazer orações aos céus para livrá-los dos rigores do cristianismo, que lhes mostrava um “Dios cruel y sin piedad”, estes mesmos índios tecem louvores aos frades franciscanos e tomam sua defesa quando acusados e levados em audiência diante do representante do rei, porque “andam pobres e descalços como nós, comem o que nós comemos e conversam conosco mansamente”.

Conhecido é o carinho que os Índios Guaranis devotavam aos franciscanos, por ser uma Ordem pobre e viverem ideais de generosidade e reciprocidade, típicos da cultura Tupi-Guaraní (cf. Louis Neeker; Índios Guaranis; Chamanes Franciscanos, Assunción 1990, p 44).

A vida em comunhão com a natureza, a ausência de toda a cobiça, a quase natural inclinação dos indígenas para compartilhar com os outros o pouco que possuíam, seu sentido de comunhão e de solidariedade, eram alguns dos traços mais importantes que os frades admiravam nos indígenas e com os quais se identificava o ideal franciscano.

Tudo isso despertava nos frades a esperança de poderem construir no Novo Mundo uma comunidade cristã segundo o modelo da Igreja primitiva de Jerusalém, com estruturas próprias, com direito canônico próprio, com padres e bispos próprios, que deveriam viver pobres e sem a faculdade de cobrar impostos. Na América Latina e Caribe viram a desejada ocasião para pôr em prática seu propósito de viver segundo o Evangelho, “sem glosas”. Ou em outras palavras: O que Francisco vislumbrou naquele certo dia os frades viram concretizado na bondade natural dos indígenas.

Este sonho Franciscano, de recuperar a Igreja dos Atos dos Apóstolos, com perfil próprio, com organização e clero indígena, tendo como modelo Cristo e o Evangelho, já presente ao natural na alma dos nativos, não pode vigorar na primeira evangelização da América Latina e Caribe. E mais uma vez a serpente da cobiça européia introduziu o pecado destruidor neste chão que, naturalmente teria vocação para ser o novo “Paraíso Terrestre”.

Os Missionários, se não foram assassinados, forma expulsos. Aqui permaneceram os invasores, que ao invés de colonizadores se tornaram usurpadores; e os “doctrineros”, que ao invés de evangelizadores se tornaram impostores. As reduções, idéia original dos Franciscanos, foram destruídas. Os povos nativos foram dizimados e o modelo que se impôs, tanto eclesial como político, foi o modelo europeu, para a desolação deste chão e destes povos da América Latina e Caribe.

Mas o sonho não acabou! Francisco e Clara continuam a nos interpelar! E é neles que buscamos um raio de luz para mantermos viva a esperança de que, no chão da América Latina e Caribe, as trevas não haverão de ser tão escuras, que os últimos não encontrem um fio de luz na noite de seus sofrimentos.

Sob a claridade de Francisco e Clara, busquemos restaurar, com ânimo e presteza, o mais sagrado dos templos de Deus: A vida dos seres humanos e do mundo. Reacendamos em nós a chama do Carisma, sopro do Espírito que ‘naquele longínquo certo dia’, irrompeu em Francisco e Clara de Assis e com eles proclamemos bem alto e a bom som, para todos ouvirem, no chão desta América- Latina e Caribe: “É isto que nós queremos, é isto que nós procuramos, é isto que nós desejamos fazer de todo coração”!

 

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